Chão de Mestre
- Instituto Mãe Balbina
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*Por: Mãe Gardênia d´Iansã
A Festa de Nego Chico Feiticeiro acontece todo ano, no mês de março, preferencialmente no dia 24. A celebração reúne filhos de santo, amigos e simpatizantes para homenagear esse grande mestre encantado do sertão, com cânticos, oferendas e muito axé sob a condução da Mãe Gardênia d’Iansã.

Evento: 36ª Festa do Nego Chico Feiticeiro
Dia: 24/03/2025
Horário: 18:30/22:00
Local: Centro Espírita de Umbanda Jesus Maria José
Público: Mais de 200 pessoas no formato presencial; mais de 20 mil no formato digital
Texto: Luís Carlos Soares
Imagens: Acervo Instituto Sociocultural Mãe Balbina
O Mestre Nego Chico Feiticeiro, se manifestou, pela primeira vez, em 1989 quando eu tinha 17 anos, dali em diante, a minha vida espiritual tomou um novo rumo. Trabalhar com ele é uma bênção que carrego com gratidão todos os dias. É um mestre de força, sabedoria, alegria e muita luz. Com ele aprendi a caminhar com respeito aos encantados, às folhas e aos saberes antigos que vêm do sertão.
Março é sempre um mês muito especial no terreiro, porque é quando realizamos a festa para o Mestre Nego Chico, e também celebramos meu aniversário, no dia 24. É uma alegria dupla: pessoal e espiritual. O terreiro se enche de filhos, amigos, convidados e entidades. Há cânticos, toques, oferendas e muita emoção. É nesse momento que sinto, com ainda mais força, o quanto nossa caminhada é guiada pelo axé e pelo amor dos encantados.
Com o coração cheio de gratidão, agradeço aos meus filhos do terreiro, que com fé, respeito e dedicação mantêm viva a força do nosso terreiro. Cada um é parte dessa corrente de luz que sustenta o nosso trabalho espiritual. Aos amigos e irmãos de fé, obrigada pelo carinho, pela presença constante e pelo apoio em todos os momentos. E ao meu marido Carlinhos, meu companheiro de vida, agradeço por estar sempre ao meu lado, fazendo tudo acontecer com amor, responsabilidade e firmeza no axé. Que Deus e os encantados nos abençoem sempre!
Entre Sertão, Encantaria e Resistência: O Culto ao Mestre Nego Chico Feiticeiro no Terreiro Umbanda Jesus Maria José.
No coração do Nordeste brasileiro, onde a aridez do sertão se entrelaça com a riqueza das tradições orais e espirituais, floresce uma religiosidade profundamente enraizada nos saberes afro-indígenas e populares. O Terreiro Umbanda Jesus Maria José, localizado em Fortaleza, Ceará, sob a condução da respeitada Mãe Gardênia d´Iansã, constitui-se como espaço sagrado de resistência cultural e espiritual. Nele, uma das entidades de destaque é o Mestre Nego Chico Feiticeiro, espírito que sintetiza a complexidade e a beleza do universo da Jurema Sagrada e das encantarias nordestinas que atuam na Umbanda.
Encantado do Sertão
Mestre Chico é reconhecido como uma entidade de força, sabedoria e profunda conexão com os mistérios da terra, do mato e das águas doces. Seu nome, carregado de ancestralidade, evoca tanto a presença negra, quanto a herança feiticeira que atravessa os terreiros do Nordeste. Nego Chico é mais que uma figura espiritual: ele é um símbolo de resistência do povo afrodescendente, um guardião dos segredos das ervas, dos pontos riscados e da cura espiritual.
Sua figura é forjada pela memória coletiva dos antigos curadores, catimbozeiros, pajés e feiticeiros da Jurema, homens e mulheres que viveram (e ainda vivem em espírito) nas encruzilhadas entre o sagrado e o profano, o visível e o invisível, o campo e a cidade. Ele é, como outros Mestres da Jurema, um encantado: espírito que transcendeu a morte física e optou por permanecer próximo dos vivos, guiando, curando e aconselhando.
Solo Sagrado de Tradição e Atualidade
Sob o comando espiritual de Mãe Gardênia d´Iansã, mulher nordestina de axé e compromisso com a ancestralidade, o Terreiro Umbanda Jesus Maria José articula elementos da Umbanda tradicional com saberes das religiões afro-indígenas do sertão. A liderança feminina de Mãe Gardênia, remonta à tradição das ialorixás, mães de santo que são, ao mesmo tempo, guardiãs do culto e líderes comunitárias. Sua atuação ultrapassa o ritual e adentra o campo político e cultural da afirmação de identidades negras, indígenas e populares.
No culto ao Mestre Nego Chico, rituais são realizados com grande devoção: oferendas de cachaça, fumo, pemba, ervas do mato, acompanhados de pontos cantados e dançados que invocam suas forças encantadas. O terreiro se torna território de axé, onde o corpo é canal, o tambor é ponte e o transe é comunicação com o mundo invisível. Assim é feito neste terreiro, semente plantada por Mãe Balbina do Rei dos Índios.
Dimensões Teológicas e Cosmológicas
No plano teológico, o culto a Nego Chico Feiticeiro representa um elo entre o mundo dos vivos e o mundo dos encantados, uma ponte espiritual que reafirma o princípio de continuidade entre o visível e o invisível. Ele encarna o arquétipo do curador-sábio, aquele que, embora negro, pobre e marginalizado em vida, adquire centralidade no mundo espiritual. Isso subverte hierarquias coloniais e eurocêntricas, afirmando uma teologia da libertação espiritual enraizada na cultura popular.
É também um culto profundamente ecológico e cosmogônico: Nego Chico é guardião dos matos, conhecedor das folhas, das águas e das forças naturais. Ele não atua apenas no plano individual, mas também coletivo, como defensor das comunidades, protetor contra injustiças e restaurador do equilíbrio social e espiritual.
Herança, Presença e Futuro
O culto a Nego Chico Feiticeiro, tal como vivenciado no Terreiro Umbanda Jesus Maria José, é expressão viva da religiosidade afro-indígena brasileira, um patrimônio imaterial que resiste e floresce em meio às intempéries do racismo religioso e das tentativas de apagamento cultural. Mãe Gardênia, com sua liderança firme e afetuosa, cultiva esse jardim de encantados com zelo e coragem, garantindo que vozes ancestrais continuem sendo ouvidas e reverenciadas.
Nego Chico é, assim, mais que um espírito: é presença, é memória viva, é força que dança, canta, cura e ensina, um verdadeiro mestre do sertão encantado.
Referências Bibliográficas
SILVA, Vagner Gonçalves da. O corpo da fé: símbolos e práticas na umbanda. São Paulo: Terceiro Nome, 2005.
AUGUSTO, Marcio de Jagun. Encantaria Brasileira: A força mágica das linhas da Jurema, dos Mestres e dos Encantados. São Paulo: Madras, 2012.
MOTA, Isis Conceição. Encantados do sertão: A Jurema Sagrada no Cariri cearense. Fortaleza: UFC, 2014.
MONTEIRO, Renato da Silveira. Sertão encantado: Mestres, caboclos e encantados na religiosidade popular do Nordeste. Recife: CEPE Editora, 2010.
AZEVEDO, Cecília Rocha de. Ialorixás: Mulheres negras e o poder religioso. Rio de Janeiro: Pallas, 2002.
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